Texto: Pedro Junqueira
Enlaçada pelo pai na ponta de uma vara e manejada para dentro de águas fluviais paulistanas, a menina aprende a dar as suas primeiras braçadas. Trata-se de receita prática germânica pra se recompor de pneumonia.
Mais tarde, a pré-adolescente experimenta os primeiros treinamentos em cocho, a versão embrionária da piscina, embutida nas margens do rio. Nasce então a piscina de verdade paulistana, surgem as primeiras competições, no rio e no mar, em São Paulo e no Rio de Janeiro. As mulheres brasileiras passam a nadar o costas de dois jeitos, de braçadas concomitantes e de braçadas alternadas. Aproxima-se a olimpíada de Los Angeles. 1932. Uma nadadora de verdade, pioneira, auto-inventada, improvável, está terminando de se lapidar. Em síntese, o Brasil é elevado ao status de nação que conta com sua natação feminina, obra e composição de uma pessoa só. E quem é ela?
Maria Emma Hulda Lenk, ou Maria Lenk, a incontestável protagonista da fundação da natação brasileira, abundante e corajosa pioneira de tempos inimagináveis em obstáculos e desafios para uma mulher nadadora, também viria a desempenhar contra o cronômetro. Por esta perspectiva, com nada menos que um recorde mundial em prova olímpica, sendo este o primeiro recorde mundial natatório por um brasileiro ou brasileira, e o único recorde mundial feminino em prova olímpica até hoje por uma brasileira, têm-se também atendido critérios específicos adicionais estabelecidos pelo HFNB, como que detalhes adicionais necessários para esta homenagem.
Em 1932, esta trajetória e sua progressão passam a poder ser mais cientificamente auferidas, nas primeiras piscinas de 50 metros em que Maria Lenk passa a competir, por elas passarem a existir no Brasil, e nas primeiras noções, assim, do que poderia ser seu tempo em provas olímpicas disputadas.
Numa espécie de coragem e desbravamento difíceis de se ponderar do ponto de vista de hoje, mesmo para quem tem alguma consciência dos costumes de outros tempos, Maria Lenk, com 17 anos, embarca, como única representante feminina, no barco saltimbanco arranjado para levar nossos atletas à California olímpica.
Desancorando do porto do Rio de Janeiro já com um passivo financeiro perigoso, que ameaçava se transformar em empecilho para a travessia do canal do Panamá, e respaldado por nosso governo, irresponsavelmente, apenas por sacas de café ainda não vendidas, a delegação de nossos atletas deve ter bem incorporado a dose adicional de estresse. Em meio ao grupo, sem piscina por algumas semanas, lá ia nossa única moça e nossa primeira grande nadadora.
Digamos que as condições iniciais dadas para a Maria Lenk, para seu primeiro evento internacional, que não era nada menos que uma olimpíada, se provaram um tanto desafiantes. Pois ela tratou de tirar o melhor proveito possível. Se ficou distante de uma medalha, não perdeu a chance de, em estando entre os melhores do mundo, observar e se educar em relação ao aprimoramento de seu desempenho.
De volta ao Brasil, nos anos seguintes Maria Lenk foi estrela nascente na popular Travessia de São Paulo a Nado. Entre as mulheres, ganhou esta prova fluvial do Tietê urbano paulistano de forma consecutiva entre os anos de 1932 a 1935. Mas eis que chega o ano de 1935, conhecido no Brasil por muitos motivos turbulentos, mas não pelo registro da inauguração de nossa primeira piscina olímpica, do Guanabara, no Rio de Janeiro, e pelo nosso papel, pela primeira vez, de anfitrião do campeonato sul-americano de natação, a principal competição internacional, então, na vida de nossos nadadores da época. No Guanabara, em grande estilo e sob farta cobertura jornalística, nossos melhores nadadores usufruíram de um primeiro pequeno gosto do estrelato. Entre eles, com destaque, Maria Lenk, vencedora da prova de 200m de costas, superando as nadadoras de todos nossos vizinhos continentais.
No ano seguinte, Hitler e o nazismo já assombrando e desinquietando a muitos, Berlim seria o palco do maior show olímpico da história até então. Desta vez, um pouquinho melhor remediados e equipados, inclusive com um tanque natatório mal-ajambrado e improvisado a bordo, os atletas seguem de navio sem obrigações financeiras a serem sanadas. A equipe de natação já é um pouco mais numerosa, e o grupo de nadadoras brasileiras viajantes soma cinco, com destaque para Maria Lenk.
Mas a viagem era longa, parando em portos para outros fins, e, apesar da brincadeira do tanque, muita forma se perdeu naquela travessia atlântica. Maria Lenk desembarcou e seguiu pra Berlim com pressa. Queria piscina, queria treinar. E como quando se tenta recuperar perda de forma na base de treinamento acelerado e volumoso, ela se contundiu, e lá foi competir em condições um tanto sofríveis. Piorou bastante seu tempo, e não alcançou finais.
Porém, Maria Lenk saiu de Berlim com uma certa fama. Desde 1934 nossa nadadora vinha ensaiando e progredindo suas inovações natatórias. Tal qual ocorreria muitas décadas depois com as possibilidades descobertas no nado submerso, Maria Lenk descobriu, vislumbrou e realizou os ganhos oriundos da recuperação de braçada por fora d’água no nado de peito. De forma alguma em violação das regras então, tal técnica, supostamente desenvolvida por um nadador americano, foi divulgada na prática através das braçadas de Maria Lenk em Berlim, e tornou-se a partir de então preponderante. Somente em 1956 um quarto estilo, subproduto desta evolução, o borboleta, já com sua pernada distinta, passou a fazer parte do cronograma
olímpico.
Depois de uma temporada estendida na Alemanha, envolvendo outras competições e estudos, com Maria Lenk desempenhando na água muito melhor que durante a olimpíada, e aproveitando para sofisticar seu aprendizado, o retorno ao Brasil marcou o início de um período de ainda maior autonomia, destemor, foco e vontade.
Houve a formatura na Escola Superior de Educação Física, e o começo do magistério na conservadoríssima Amparo, no interior de SP, onde Maria Lenk revolucionou os costumes, principalmente os aquáticos e femininos. Houve a mudança pro Rio de Janeiro, principalmente com a aproximação da suposta próxima olimpíada. Os treinos, um tanto autodidatas, no Guanabara, e o campeonato sul-americano em Lima, em 1938. Lá, pela primeira vez em uma competição internacional, depois de traslado demorado do Rio de Janeiro, Maria Lenk, levando o ouro, se aproximou do recorde mundial dos 200m peito, que era a distância da prova olímpica, então, neste estilo.
No fim de 1938, em competição no Rio de Janeiro, em piscina de 50 metros, Maria Lenk abaixaria mais três segundos seu tempo na prova, para 2min57seg0, ficando a um décimo do recorde mundial, que tinha sido estabelecido em piscina de 25 metros. Maria Lenk tornava-se uma das favoritas no mundo nesta prova, a um ano e meio da olimpiada esperada em Tóquio. Em seguida, em 1939, ela iria a Guayaquil para mais um sul-americano de ouro nas provas de peito. Na volta seria recepcionada por Getúlio Vargas.
E aí no fim daquele ano chegava, de forma talvez antecipada, o trunfo histórico dos recordes mundiais. Primeiro, em outubro, nos 400m peito, prova que era, então, ainda disputada. Na sequência, em 8 de novembro de 1939, o recorde mundial de 2min56s0, nos 200m de peito, estabelecido na piscina do Guanabara, batendo o recorde de 2min56s9, da holandesa Jopie Waalberg, e também superando a melhor marca brasileira masculina por três segundos, um feito que deve ter provocado desconforto em alguns.
Tóquio, na vontade, na dedicação e na ansiedade de Maria Lenk, se aproximava. Ela seria então convidada pra ir àquele outro canto do globo para participar de competições locais. Mas só que não. A guerra já andava. Os cartolas brasileiros vedaram. E alguns meses depois Tóquio já se confirmaria como uma cidade olímpica anfitriã impossível de ser. Ainda tentaram um arranjo substitutivo às pressas, escolhendo Helsinque como sede daquela olimpíada. Mas eis que a Finlândia é invadida pela Rússia. E o sonho da culminação de uma carreira, no topo da forma, como favorita, em uma próxima olimpiada, foi interrompido de vez para nossa nadadora. Maria Lenk disse que, ao cair na realidade da não olimpíada, pulou na água e tentou nadar sem parar, bracejando e tentando escapar, esquecer daquela gigantesca decepção.
Maria Lenk ainda brilharia no sul-americano em 1941, em Vina del Mar, o primeiro que o Brasil foi vencedor. No final daquele ano, concomitantemente aos bombardeios de Pearl Harbour, ela, outra vez como única mulher, seguiu como um dos premiados em viagem aos Estados Unidos de pequeno e seleto grupo dos melhores nadadores da América do Sul. Passou um mês viajando, competindo, e deixando recordes em cidades no nordeste e norte americanos. Na volta, no começo de 1942, encerrou a primeira parte de sua brilhante carreira de nadadora competitiva. Ia se tornar catedrática, e depois diretora, na Escola Nacional de Educação Física e Desportos, escrever e traduzir sobre educação física, esportes e natação. Ia ser mãe de dois filhos.
Quase quarenta anos depois, Maria Lenk estaria novamente na fronteira da inovação da natação. Foi parte do movimento que inventou, e fez acontecer, a competição Master de natação, tão popular hoje em dia. Ela mesmo se tornou uma grande nadadora Master, participando de vários mundiais e estabelecendo recordes, até quando nadou na faixa etária dos 90 aos 94 anos. Sua avassaladora atitude de pioneira e desbravadora, vida a fora, continuou até o fim. Assim como a prática da natação. E como parece que não poderia deixar de ser, foi da água, no treino, que Maria Lenk se despediu de todos nós, aos 92 anos, em 16 de abril de 2007. Se tornou, sem dúvida alguma, a matriarca da natação brasileira. Ela, com todo louvor e muita honra, o HFNB homenageia, saudando o seu lugar eterno entre todos nós.
Grande dama da Natação. Aprendi muito com ela, quando nadei na equipe de Masters do Flamengo. Um dos melhores conselhos foi “mesmo que você nade bem, nunca se esqueça dos educativos! Saudades