Texto: Pedro Junqueira
Homenagem do HFNB a Marcus Laborne Mattioli – 02/11/2023
Eram quatro irmãos em estilo escadinha. O primeiro foi para água pela mesma razão de onze entre cada dez nadadores: asma e o amor dos pais que querem resolver isto. No rastro, o segundo se tornou campeão brasileiro e nadador histórico no Minas Tenis Clube (Minas). No embalo, o terceiro foi campeão mundial estudantil. E aí, para fechar, o caçula trouxe uma medalha olímpica. Eis aí, em uma casca de noz, o resumo da história dos Mattioli, família legendária do Minas, da qual Marcus Laborne Mattioli, o caçula, é o homenageado e novo membro do Hall da Fama da Natação Brasileira.
Marcus, ou, segundo todos os seus amigos nadadores mineiros, Marquinhos, começou cedo a treinar, aos três ou quatro anos, típico de quem tem três irmãos mais velhos nadadores. Seguiu em frente competindo pelo Minas como mini-mirim, mirim, petiz, infantil… A certa altura, normal, o adolescente começou a matar treino, a frequentar a pelada do outro lado do clube, a tirar um pouco a natação do protagonismo. Mas continuava a vestir orgulhoso o uniforme da natação do Minas, a competir, só que sem se destacar em campeonatos brasileiros.
Foi aí que, quis o destino, o bom espírito competitivo, natatório, brotou, e brotou com força avassaladora, fruto de uma das causas mais importantes da performance de um nadador de elite: o colega de treino. No começo de 1975, no campeonato brasileiro infanto-juvenil, enquanto poucos tinham ciência do nadador Marquinhos, seu colega de treino, coetâneo, e amigo de vida, Helio Lipiani, brilhou muito além do que um minastenista estava acostumado. Helinho ganhou o ouro nos 100m livre juvenil (13 e 14 anos naquela época), a prova que todo mundo acompanha no campeonato brasileiro, para algumas semanas depois ir até Arica, Chile, vencer o sul-americano, e retornar ao Minas sob aplausos, com direito a homenagem e troféu. Naquele momento, no amigo observador que acompanhou tudo, a semente da medalha olímpica era plantada. De uma hora para outra, sua atitude em relação aos treinos e ambição multiplicou por dez em qualidade.
O Minas naquela época, na pacata e gostosa Belo Horizonte, tinha sua natação completa treinada por membros da polícia militar. A evolução clamava por alterações. E no primeiro semestre de 1976, com um olho no Troféu Brasil que iria se realizar no Minas no começo de 1977, desembarcava naquelas terras Amaury Machado, que tinha trabalhado com o conhecido técnico Pavel, no Botafogo. Depois do Helinho, o segundo fator da feitura da futura medalha olímpica do Marquinhos se constituía naquele momento, na figura daquele simpático treinador bigodudo de sotaque carioca.
Amaury começou a reestruturar e modernizar a natação do Minas, iria tirar o clube daquela região dos clubes de poucos pontos na tabela de classificação do Troféu Brasil e, através de melhores nadadores, com destaque para o Marquinhos, colocar o Minas como clube competidor levado a sério pelos melhores clubes cariocas e paulistas. Na verdade, para quem quer saber e entender história e evolução, no Troféu Brasil do início de 1977 nascia a preponderância futura na natação brasileira do Pinheiros, com seu primeiro título naquela competição, e do Minas, quarto lugar naquela competição. E com 16 anos de idade recém completados, Marquinhos se tornava o principal pontuador masculino do Minas e, para os não mineiros, Mattioli se tornava um nome de um nadador auspicioso para o futuro da natação brasileira. Ele se destacou principalmente como fundista, medalhando nos 400m livre e nos 1500m livre. Mas aquilo era o começo ainda de sua mudança de patamar.
Amaury se alinhou super bem com seu pupilo principal. Convenceu o Marquinhos a treinar como fundista, o que o faria, a longo prazo, um nadador mais completo e capacitado para treinamento. Na parte da bacia daquela piscina antiga do clube, no fundo, debaixo dos trampolins, houve uma pequena revolução, e nadadores como Marquinhos e Helinho se submeteram, com muita garra, a séries e mais séries diárias de treinamento de fundista, ganhando familiaridade com tudo que o cronômetro e o relógio podem transformar e melhorar um nadador de alta performance. Nesta época, também, se consolidou a técnica do Marquinhos Mattioli, um nadador de braçada perfeita, em termos de eficiência e estética, da mesma escola de um Thorpe e de um Wellbrock.
O resultado foi um Julio Delamare (JD), em Recife, e um Troféu Brasil (TB), no Fluminense, históricos, no começo de 1978. No JD, em embate com o Jorge Fernandes nas provas mais rápidas, e em domínio absoluto nas provas longas, incluindo o 400m medley, Marquinhos varreu as medalhas destas provas, e ainda se destacou no borboleta, estilo no qual seria um dos que viria a ocupar o espaço de liderança nacional nos anos seguintes, no costas, e nos revezamentos. No TB, contra o nosso maior nadador dos anos 70, Djan Madruga, Marquinhos saiu conquistando muitas pratas, justamente porque os dois, para pontuar para seus respectivos clubes, só não nadavam prova de peito, se enfrentando em inúmeras provas durante o torneio.
Depois daqueles dois anos últimos, de muita evolução, quando 1978 começou a avançar, Marquinhos passou a se concentrar nas provas de meia-distância, com foco nos 200m livre, a distância que o levaria à medalha olímpica em revezamento.
De quebra continuava nadando as provas de borboleta, e também de 200m medley, antes da ascensão do Prado, e com o Djan mais focado nos 400m medley. Aos poucos ele foi se especializando e arrancando segundos preciosos no tempo dos 200m livre. De 1m57s, no começo de 1978, ele chegou em 1m56s no campeonato mundial no meio daquele ano em Berlim, e, um ano depois, em 1m54s9 nos Jogos Pan Americanos (Pan), em San Juan, em julho de 1979. Mais importante, naquela competição, além de conquistar o bronze na prova de revezamento de 4x100m livre, abrindo o revezamento na final dos 4x200m livre, com a mesma equipe que conquistaria a medalha olímpica, Marquinhos nadou os 200m livre em 1m54s71, e o Brasil conquistou a prata, batendo o Canadá por três décimos de segundo. Naquele tempo Canadá e EUA enviavam seus melhores nadadores para o Pan.
No Pan o Brasil bateu duas vezes o recorde sul-americano dos 4x200m livre, marcando na final 7m38s92, uma média de 1m54s73 por nadador. Para efeito de comparação, na olimpíada de 1972 e nos mundiais de 1973 e 1975, o revezamento brasileiro nesta prova nadou na faixa entre 8m17s e 8m07s, ou seja, trinta segundos mais lento. O recorde brasileiro individual dos 200m livre só quebrou a marca de 2 minutos no começo de 1973. E no ano seguinte ao Pan, para efeito da conquista da medalha olímpica, o recorde de revezamento ainda iria andar muito mais. Na verdade iria alcançar marca mais rápida que quatro vezes o recorde sul americano individual na prova na mesma data, que pertencia então ao Djan. Isto só foi possível em função de uma conjunção extraordinária de vários fatores, entre eles o fenômeno da existência concomitante de quatro nadadores brasileiros de primeiríssima estirpe nos 200m livre, algo inédito então.
Para quem conhece, a prova de 200m livre é uma das mais bonitas, porque é uma arte a se dominar. O nadador tem que ter os atributos de velocidade e resistência de forma mais equilibrada, e muita tarimba e sabedoria, porque ele busca maximizar sua performance temporal sem poder acelerar nem demais nem de menos, e distribuindo esta constante calibragem ao longo de todo o percurso, sob o efeito de sua percepção de posição em relação aos seus competidores. Um pequeno erro, em qualquer destas dimensões, significa algo inferior à maximização potencial do nadador. E isto tudo ainda tem que ser ajustado em função das condições dadas no dia, principalmente de como o nadador está se sentindo. É isto que o Marquinhos passou a maior parte de sua existência naqueles anos tentando aprimorar. E de 1975 a 1980 o Brasil produziu quatro exímios artistas dos 200m livre. Mas para a medalha olímpica, além de artistas, eles precisavam ainda de outros atributos, a serem adquiridos depois do Pan.
E depois do Pan Marquinhos foi para os EUA, em Fort Lauderdale, com a equipe do Minas. Lá treinaram e competiram, e o Coach Nelson, técnico americano da equipe feminina dos EUA na olimpíada de Montreal, em 1976, conversou com o Amaury sobre a possibilidade do Marquinhos por lá treinar. Mas, na mesma época, depois de contato do Amaury tanto em Bloomington, Indiana, como no Minas, em Belo Horizonte, por ocasião de visita ao clube mineiro do super time americano daquela universidade, Doc Counsilman já estava fechando uma bolsa para levar o Marquinhos para treinar na meca da natação do meio oeste americano, inclusive junto com o Djan que lá já treinava e estudava há um tempo. E assim, entre o Pan e, doze meses depois, as olimpíadas de Moscou, Marquinhos dividiu o seu calendário, treinando sucessivamente junto aos Hoosiers, tentando extrair o relevante potencial de melhora da oportunidade, e aos minastenistas, mais lá um pouco do que cá.
Moscou chegou com a seguinte cara: Djan e Rômulo Arantes eram os protagonistas, e veteranos, apesar de não serem tão mais velhos; dos outros nenhum era visto com qualquer chance nem de medalha e nem de final. Só que, vislumbrando oportunidade improvável mas para a qual valia dar o sangue e fazer jus a uma vida de treinamento, Djan, Marquinhos, Jorge Fernandes e Cyro Delgado começaram a se comportar e agir como uma verdadeira equipe de revezamento medalhista olímpica. Isto quer dizer muita coisa, inclusive intangíveis, mas o que os quatro, retrospectivamente, gostam de relatar é a tal da mentalização, que somente os quatro têm credibilidade para explicar. Liderados pelo Djan, os quatro embarcaram séria e profissionalmente neste exercício que, as evidências indo além do intervalo científico de 95% de certeza, deu para lá de certo.
No quarto dia de competição da natação na olimpíada, um memorável 23 de julho de 1980, depois de um começo ruim de competição para as duas esperanças brasileiras, e uma performance tépida de Marquinhos, Jorge e Cyro na prova individual dos 200m livre, com os três nadando acima de 1m54s, chegou o dia do revezamento. Na prova individual dos 200m livre teve russos, australianos, italianos, alemão oriental e sueco na final. Todos estes, e mais alguns outros que tinham chegado à frente dos três brasileiros na prova individual, faziam parte dos respectivos revezamentos de seus países.
Pela manhã, nadando na segunda série, o Brasil mandou 7m32s81, atrás da favorita União Soviética, e em terceiro no geral. Lá se foi, fácil, um recorde sul-americano. Só que parecia que ainda havia gordura a ser queimada, e, sem ilusão, sabiam que precisariam desta suposta reserva porque sabiam que a final seria uma outra história, um outro patamar. Marquinhos teve a melhor parcial, de 1m52s76, bem abaixo do que vinha nadando, e contribuindo para colocar o Brasil na raia 3 na final. Jorge, que abria, já nadou bem melhor que na prova individual, marcando 1m53s49. Cyro, na parcial, também tinha melhorado um pouco, 1m53s20. E o âncora, o capitão, Djan, fechando com seus 1m53s36 parecia, tipicamente, controladamente ter guardado o seu coringa no bolso.
Vem a final, a prova da vida deles, representando um Brasil inteiro sem medalhas, lá longe, quase chegando nos Urais, dentro do Olimpisky Sports Complex. Jorge sobe na banqueta da raia 3 para abrir. Manda 1m52s61, 27 centésimos do recorde sul-americano. Marquinhos, nadando ao lado de Salnikov, mantém o nível da manhã, com 1m52s94. Cyro abaixa bem, 1m52s35, conseguindo, na margem de décimos, vir do quinto para o terceiro. E Djan, ancorando, contra outros fortes âncoras, mantém o terceiro, cravando uma parcial de 1m51s40, com o quarto, o quinto, o sexto e o sétimo lugares a menos de um segundo e meio dele. Tempo total 7m29s30, mais três segundos e meio de baixa no recorde sul-americano. Tal tempo seria recorde mundial até quatro anos antes. Nada mal para o improvável grupo de quatro nadadores brasileiros artistas dos 200m livres, unidos, poderosamente mentalizados, melhorando muito, cada um, na hora certa, sob pressão de final olímpica, e colocando o Brasil no quadro de medalhas, de todos os esportes. Tal feito, qualifica, por si só, a qualquer um dos participantes daquele revezamento, à entrada no Hall da Fama da Natação Brasileira. Ponto.
Terminada a olimpíada, as homenagens, as celebrações, Marquinhos, medalhista olímpico, aos 19 anos de idade, se vê na inexorável realidade de seguir em frente sua vida. Entrando em 1981, ainda nadando e treinando, mas começando a cotejar o custo de dedicação e as possibilidades de renda em início de vida adulta, ele, amante do Minas e desinteressado por outro clube, começou a buscar independência financeira. Ainda indo ao Universiade em Bucareste, em julho daquele ano, começaria a encerrar, ou pelo menos achava que encerraria, sua vida de nadador um pouco depois. A pausa tendo durando um pouco mais de dois anos, ele retornaria às piscinas em 1984, talvez motivado pela performance recente então do Ricardo Prado. Nesta prorrogação de jogo, Marquinhos ainda iria ao Mundial de Madrid, em 1986, participando de várias provas, e encerraria de vez, ou achava que estaria encerrando, a carreira, em 1987.
Dezenove anos depois, em 2006, por força de uma combinação de fatores, incluindo saúde e paternidade, Marquinhos retorna pela segunda vez para as piscinas. No começo, parece uma brincadeira. Os treinos vão aumentando, se intensificando, Marquinhos começa a se infiltrar em treinos de gente craque e um quarto de século mais nova do que ele, enfia os palmares, e desata a querer acompanhar minastenistas como Thiago Pereira, Rodrigo Castro e Nicolas Nilo. A consequência disto, além de muitas homenagens e premiações e viagens de competição, em piscina e mar, são um sem número de recordes mundiais master nos últimos quinze anos, dos quais ele ainda detém três, se não voltar a adicionar mais, porque continua nadando e competindo, muito diferenciadamente, incluindo em mundiais, aos 63 anos recém completados. Uma inspiração a todos nós que amamos a natação, a saúde, e a atitude positiva frente ao destino. Parabéns e obrigado Marquinhos! O Hall da Fama te celebra, te admira, e te agradece por tudo que você faz e representa para a natação brasileira.
Entrevista a TV Swim Channel no dia da entrega da placa de homenagem, eternizando Marcus Mattioli como membro do Hall da Fama da Natação Brasileira
Cerimônia de entrega da placa de homenagem do Hall da Fama da Natação Brasileira realizada no Esporte Clube Pinheiros, em São Paulo, durante o 3º dia de competições do Campeonato Brasileiro Absoluto de Natação – Troféu José Finkel, em 2 de novembro de 2023.
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