Texto: Carlos Eduardo Dudorenko e Pedro Junqueira

A história de Manoel dos Santos nos remete ao interior de São Paulo, dado geográfico pertinente porque é deste mesmo interiorzão paulista que vieram quase todos os nossos melhores nadadores masculinos até hoje. Tetsuo de Marília, Manoel de Guararapes, Fiolo de Campinas, Prado de Andradina, Gustavo Borges de Franca e César Cielo de Santa Bárbara d’Oeste. A curiosidade geográfica fora de série é que o pai de Manoel, um imigrante português, era proprietário de um hotel em Andradina onde ele hospedou, durante muito tempo, um casal de gaúchos que migrou para lá, e que, este casal, gerou, entre vários campeões nadadores, um outro recordista mundial brasileiro, o seu caçula, Ricardo Prado. O pai de Manoel, além de ter gerado um recordista mundial e hospedado os geradores de outro recordista mundial, era dono também de um cinema, onde seu filho garoto obrigava o operador das películas repetir várias vezes as cenas dos filmes do Tarzan nas quais o Johnny Weissmuller dava suas braçadas. Manoel assistia e observava o grande campeão olímpico e tentava imitá-lo na Represa do Ramalho.

Treinamento de Internato

No seu quarto ano de vida, Manoel passou a maior parte do tempo em um hospital, se recuperando de recorrentes ameaças de pneumonia e similares que seu mirrado e fragilizado corpo sofria. O pai viu na natação a salvação daquele drama. Antes de completar onze anos, no começo de 1950, Manoel foi estudar como interno em Rio Claro, no Ginásio Koelle, um colégio alemão. O menino se viu afastado da família, a qual ele só via nas férias e semana santa, quando ele pegava o trem para o oeste do estado. Lá em Rio Claro, na rotina rígida do colégio, Manoel se ajustou bem com o programa natatório. Numa piscina de uns 20 metros, sob a orientação de Bruno Buch, seu primeiro mestre, ele passou a treinar, competir e fazer parte do time do ginásio.

O nadador mais forte do grupo era um garoto três anos mais velho que Manoel, chamado João Gonçalves, futuro campeão e recordista sul-americano no nado de costas e atleta multiesportista participante de várias olimpíadas. Mas João tinha um estilo, como nadador, chamado na época de brigador. Na base da força bruta. Por outro lado, a namorada do João, Inge Borg, deslizava na água e era considerada uma estilista, da escola do Weissmuller que inspirava Manoel e que influenciou seu estilo. A versão moderna do estilista seria o australiano Ian Thorpe, com seu nado sem arranque de cabeça e de braçadas angulares, simétricas e fluídas.

Em 1955, Manoel dos Santos se aproximou do topo nacional. Seu nado era o costas e seu treino era mais focado neste estilo. Nos 100m livre, estávamos em época de transição na liderança nacional. Nossos três maiores velocistas da virada de década e começo dos anos 50, os cariocas Aram Boghossian, do Tijuca, Sérgio Rodrigues, do Fluminense, e o paulista pinheirense Plauto Guimarães, tinham dependurado as respectivas sungas. O paulista Paulo Catunda e o santista Haroldo Lara eram os mais rápidos agora. Haroldo seria nosso maior expoente até 1957, quando largou a natação, se mudou para a Itália e se tornou cantor de ópera.

Em março de 1955, Manoel foi convocado para sua primeira competição internacional, os II Jogos Pan-Americanos, na Cidade do México. Desde então, a partir dos seus 16 anos de idade, ele encarou estes momentos como representante nacional com excessiva responsabilidade e idealismo de atleta amador daqueles tempos. O adjetivo amador significava, antes de tudo, aquele que ama o esporte, e não tinha a conotação atual de praticante de segunda linha, ou de inocente. No México, depois de uma viagem de avião militar de carreira, um DC-3, que durou quatro dias, com pernoitadas em Belém, Trinidad e Tobago e Cuba, Manoel competiu muito mal. Sua principal lembrança do torneio foi do momento em que ele saiu desolado da prova, caiu numa bela piscina vizinha de aquecimento e, fingindo estar se soltando, chorou muito, solitariamente, até a última lágrima se perder escondida no meio do cloro.

No ano seguinte, em fevereiro de 56, em Viña del Mar, no Chile, aconteceu a décima-terceira edição do campeonato sul-americano. Das doze anteriores, o Brasil só tinha derrotado a Argentina uma única vez, na mesma Viña del Mar, em 1941. Manoel dos Santos, escalado para os 100m livre, ficou em quinto lugar na final, e Haroldo Lara pegou a quarta posição. Nos 200m costas, Manoel ficou em quarto lugar e a prova foi vencida por seu colega de Rio Claro, João Gonçalves. No revezamento 4x100m livre, a prova teve uma final espetacular. Em primeiro, com recorde de campeonato, em 3m59s7, chegaram os peruanos. Um décimo de segundo atrás, medalha de prata, chegou o Brasil. Os argentinos vieram em terceiro, nove décimos de segundo atrás do Brasil. A equipe de revezamento brasileira contava com Haroldo, Manoel e João, além de Aristarco de Oliveira. Nas tomadas parciais, Manoel foi o mais rápido dos quatro. Ele declarou que, naquele momento, ele percebeu que sua especialidade e futuro eram os 100m livre, e o costas era apenas um subproduto. Este clarão, esta consciência de onde residia seu verdadeiro talento resultou, em pouco tempo, num salto de melhora. Quanto ao Sul-Americano, como de esperado, os portenhos levaram o título mais uma vez.

Em setembro de 1956, em dois fins de semana seguidos, no Rio e em São Paulo, Haroldo Lara quebrou e repetiu o recorde nacional dos 100m livre, em piscina de 50m, marcando 57s8, recorde este que estava nas mãos de Boghossian desde 1948. Dois meses depois, na nova e majestosa piscina do Vasco da Gama, Manoel dos Santos não conseguiu obter o índice olímpico para a prova, por dois décimos de segundo. Ele se confortou com o pensamento de que na próxima ele iria. A participação da natação brasileira na olimpíada em Melbourne, Austrália, representou um ponto baixo na nossa história. Refletindo nosso talento existente nos anos de 1954 até 1957, não houve um herói salvador, e ficamos de fora de todas as finais.

O Velocista Se Aperfeiçoa

Em 1957, finalizado o secundário em Rio Claro, Manoel dos Santos se mudou para Santos. A escolha da nova cidade se deveu à entrada na vida dele de Minoru Hirano, seu novo técnico, mestre e quase pai. Hirano entrou pra natação pelas vias do serviço de tradução, exercido durante a estada dos Peixes Voadores no Brasil, em 1950. Foi muito conhecimento natatório adquirido acompanhando e decifrando os olímpicos e recordistas mundiais japoneses. Manoel foi morar com a família de Hirano e treinar no Clube de Regatas Internacional. No fim dos anos 50, a metragem dos treinamentos, mesmo no Brasil, começou a aumentar substancialmente. Hirano foi contra a corrente. Ele fazia Manoel nadar uns mil metros e depois trabalhava perna, posicionamento de braçada, ângulo do queixo etc., e finalizava com uma meia dúzia de tiros de 25m. Muitas vezes ele não podia estar presente aos treinos, e Manoel chegava sozinho para a sessão com um papelzinho na mão ou a sequência decorada na cabeça.

Em dezembro de 1957, Manoel bateu o recorde nacional de Haroldo Lara e sul-americano do argentino Pedro Galvão, em Santos, em piscina de 25 metros (ainda válido naquele ano), marcando 56s5. Na sequência, em fevereiro de 1958, foi realizado o Sul-Americano seguinte, em Montevideo. Pela primeira vez na história de trinta anos e catorze edições do torneio, o vencedor dos 100m livre venceu a prova com folga, não na batida de mão, mas com dois segundos e meio de frente ou quase cinco metros de distância. Seu nome, Manoel dos Santos. O único brasileiro até então, além de Armando Freitas em 1939, a conquistar este ouro. A medalha de prata foi para o quase invencível Ismael Merino Martínez, o peruano tricampeão da prova em 52, 54 e 56. O tempo de Manoel nas eliminatórias, 56s6, representou novo recorde sul-americano, já que a partir de 1958, todas as federações internacionais oficializaram a regra de só considerar válidos os recordes em piscina de 50 metros.

Manoel ajudou o Brasil a varrer todos os ouros das três provas de revezamento e conquistar os imprescindíveis pontos duplos destes eventos. Ele não pôde fazer mais porque a prova dos 200m livre foi retirada da programação do Sul-Americano para igualá-la ao programa olímpico. Sylvio Kelly ganhou os 400m livre, João Gonçalves levou as provas de costas e Otávio Mobiglia as de peito e, no feminino, Silvia Bitran venceu todas as provas do nado livre. Finalmente, 27 anos depois do seu primeiro título, o Brasil reconquistava o título máximo do nosso subcontinente. Esta onda positiva na nossa natação iria crescer a reboque da fenomenal performance de Manoel nos anos seguintes, muito maior que qualquer experiência natatória que o Brasil já tinha vivenciado até então. Não deixa de ser apropriado notar que aqueles eram os anos dourados de JK, o ano da nossa primeira Jules Rimet, os tempos de surgimento da Bossa Nova e, no pequeno mundo dos amantes da natação, a época de nosso Sputnik, Jato, o homem mais rápido do mundo na água.

Manoel e o Rei Pelé

Manoel e o Rei Pelé

No ano seguinte ao Sul-Americano de Montevideo, veio a primeira viagem para os Estados Unidos. As camas, na vila olímpica montada na universidade de Chicago, eram daquelas de colchão mole americano, estranhas e desconfortáveis para alguém que cresceu dormindo em cama dura de colégio de internato. O corpo dolorido e mal dormido, e as costas que não empinavam mais, afetaram o equilíbrio do nado. Manoel dos Santos, a grande esperança de medalha da natação brasileira nos Jogos Pan-Americanos de 1959, não passou de um quarto lugar nos 100m livre, nadando acima dos 58s, quando as expectativas giravam em torno dos 56s. Seu currículo de nadador em matéria de Pans ficou, para sempre, aquém das possibilidades do seu talento. Depois do México em 55 e Chicago em 59, Manoel não chegaria até São Paulo em 63.

Seis meses depois, em fevereiro de 1960, foi a vez do campeonato sul-americano em Cali, na Colômbia. Na relativa altitude da cidade andina, os tempos não foram muito bons. Mas Manoel dos Santos cumpriu seu papel razoavelmente, levando o ouro de bicampeão dos 100m livre e liderando nossos revezamentos para conquistar mais dois ouros e uma prata. A peleja contra os argentinos foi muito acirrada, tanto no feminino quanto no masculino. No final, suado, trouxemos o primeiro bicampeonato da história. Cali viu o aparecimento daquele que iria se consagrar, durante a década de 60, como o maior nadador de Sul-Americanos de todos os tempos, o portenho Luis Alberto Nicolao. Aos 15 anos, Nico, futuro recordista mundial dos 100m borboleta e, juntamente com Alberto Zorrila, melhor nadador argentino da história, conquistou seu primeiro ouro individual na sua modalidade mais famosa.

Em 1960, Manoel dos Santos já representava o Pinheiros. Mas ele nunca treinou sob a orientação de Sato, o conhecido técnico pinheirense. Manoel continuou sempre seguindo as diretrizes determinadas por Hirano, seu mestre de Santos. Ele usava a piscina do Pinheiros, e às vezes a do Corinthians, durante o verão e, no inverno, descia a serra e dava suas braçadas no Clube de Regatas Internacional. Em julho de 60, durante os preparatórios finais pré-olímpicos, no Rio de Janeiro, Manoel quebrou convincentemente seu recorde sul-americano dos 100m livre, marcando 55s6. Este feito o posicionou como forte concorrente à medalha olímpica em Roma.

A Única Olimpíada

Em agosto, a equipe brasileira de natação partiu para a Europa. Primeiro, uma parada sem sentido em Portugal, para os Jogos Luso-Brasileiros. Ou melhor, com sentido político, determinado pela chefia militar nos esportes olímpicos brasileiros, típica daqueles tempos. O Major Padilha era nosso eterno chefe de delegação. Em Lisboa, numa piscina com água a 13 graus de temperatura, nossos nadadores competiram contra um time inexistente, que sempre foi a natação de Portugal. O resultado foi uma amigdalite em nossa estrela maior, único nadador brasileiro até então a chegar numa olimpíada com chances reais de escapar do anonimato. Manoel seguiu de Lisboa, sob efeito de antibiótico, aterrissou na cidade aberta e foi para a vila olímpica ficar de molho por mais um dia, longe da piscina. Depois, seriam mais três dias pra se recuperar antes das eliminatórias dos 100m livre, sempre a prova de abertura do programa olímpico naqueles tempos.

Roma, como não poderia deixar de ser, também impressionou a todos com o Estádio Olímpico e vários eventos sendo disputados nos locais da antiguidade. O estádio aquático era imponente, mas as mesas usadas para massagem ainda eram as tradicionais mesas de ping-pong. Numa sexta-feira, dia 29 de agosto de 1960, às 8h30 da manhã, tiveram início as competições de natação com as eliminatórias dos 100m livre masculino. Manoel dos Santos, nadando na raia 4, ganhou a terceira série, com 56s3. Foi o terceiro empatado melhor tempo no geral. Vinte e quatro nadadores passaram para as semis. Tanto Nicolao, como o outro brasileiro, Fernando Nabuco de Abreu, ficaram de fora. Para se classificar foi preciso 58s2. À noite, nas semis, Manoel voltou a vencer, empatado, na mesma terceira série, na mesma raia 4, com o mesmo tempo de 56s3. No geral, agora, ele ficou em quarto lugar empatado. As primeiras três posições foram para os americanos Lance Larson e Bruce Hunter, e o australiano John Devitt, com os tempos de 55s5, 55s7 e 55s8, respectivamente. Para se classificar para a final foi necessário 56s5, tempo do canadense Richard Pound que, muitos anos depois, veio a se tornar famoso como o xerife da WADA, a agência antidoping mundial.

O Ouro Olímpico Que Escorregou Pelas Mãos

No dia seguinte, sábado, às 9h10 da noite, chegou o momento da final. Manoel dos Santos foi escalado para a raia 6. Ele sabia que só teria alguma chance se nadasse um segundo mais rápido do que na véspera. Deu-se o tiro de largada, a saída chapada daqueles dias, e foram quase 40 metros sem respirar. A prova da vida dele. Quando o bom senso gritou e ele se virou para direita para a primeira puxada de ar, Manoel não viu ninguém. Hunter na raia 5, Larson na 4, e Devitt na 3, estavam fora do radar da rápida primeira olhada. Certamente não estavam na frente. Só poderiam estar atrás, e não era pouca a diferença. Aquilo foi desnorteante. Mais algumas braçadas até que Manoel localizasse a posição dos oponentes. Neste ínterim, muito se passou pela cabeça dele, inclusive a possibilidade de ter escapado, tamanho o susto que levou. Nos segundos cruciais de preparação para a virada, virada esta mais complicada em 1960, devido à exigência de toque de mão antes da cambalhota e aos oclinhos inexistentes, Manoel estava um tanto quanto perdido e só foi se achar quando bateu, inesperadamente, seu antebraço na borda da piscina. Quem estava lá viu. Aquele assombro de velocidade bateu bem na frente nos 50m, virou por cima estabanadamente, e saiu de volta atrás. No desespero do azar que surge quando menos se espera, só restou a ele acelerar tudo que tinha novamente. Na linha dos 80 metros, Manoel tinha recuperado a liderança. E ali chegou a hora de pagar o preço do imprevisível. Apesar dele sustentar que morreu nos 20 metros restantes, a diferença final foi de dois décimos de segundo. O ouro envolveu uma das decisões mais conturbadas da história olímpica da natação. Mas Manoel não era parte da controvérsia, já que seu bronze tinha sido claro, no tempo de 55s4, novo recorde sul-americano.

Chegada dos 100 metros livre nos Jogos Olímpicos de Roma em 1960. Manoel não aparece na foto, mas ele bateu muito perto dos dois primeiros colocados, à frente do americano Hunter que nadou na raia 5. Fonte:

Chegada dos 100 metros livre nos Jogos Olímpicos de Roma em 1960. Manoel não aparece na foto, mas ele bateu muito perto dos dois primeiros colocados, à frente do americano Hunter que nadou na raia 5. Fonte: 1960 – Comité International Olympique (CIO) – www.olympic.org

Manoel dos Santos foi para o pódio feliz com seu bronze. Dando continuidade ao pequeno legado olímpico deixado por seu ídolo Tetsuo, ele se contentou com uma medalha olímpica. Mas em pouco tempo ele perceberia que poderia mais. E mais seria o status de mais rápido do mundo. Esta segurança adquirida foi condição sine qua non para que ele galgasse mais alto.

Podium dos 100m livre nos Jogos Olímpicos de Roma. John Devitt (AUS) em 1o. lugar, Lance Larson (USA) em 2o. e Manoel dos Santos (BRA) em 3o.

Podium dos 100m livre nos Jogos Olímpicos de Roma. John Devitt (AUS) em 1o. lugar, Lance Larson (USA) em 2o. e Manoel dos Santos (BRA) em 3o. Fonte: 1960 – Comité International Olympique (CIO) – www.olympic.org

Os três medalhistas dos 100m em Roma: Larsen, Devitt e Manoel dos Santos

Os três medalhistas dos 100m em Roma: Larsen, Devitt e Manoel dos Santos. Fonte: Relatório Oficial da Olimpíada

Em Roma Manoel não pôde fazer mais nada. O revezamento brasileiro 4x100m medley não chegou nem perto das finais e Manoel tinha sido poupado, contra a vontade dele, das eliminatórias. Terminadas as competições de natação, era hora de voltar para casa. A doutrina militar não permitia que os nadadores permanecessem em Roma e assistissem o resto dos jogos olímpicos. Manoel foi privado, assim, de admirar Abebe Bikila entrando descalço no estádio olímpico no cair da noite romana.

Abebe Bikila, sensação em Roma ao vencer a maratona descalço

Abebe Bikila, sensação em Roma ao vencer a maratona descalço

De volta de Roma, Manoel entrou no período típico de relaxamento pós-olimpíada. Perdeu um pouco a forma. Mas no seu caso e na sua época ainda se fazia valer mais o talento do que uma base de treinamento de ciclo longo. De volta à piscina, a recuperação era rápida. O alerta veio numa inesperada derrota de dentro do Brasil. Na azarada piscina do Vasco da Gama, no campeonato brasileiro, no começo de 1961, Manoel ficou com a prata nos 100m livre, marcando 57s8. O vencedor, um segundo inteiro na frente, foi o grande nadador do Paulistano, Athos Procópio de Oliveira, que, além de ter sido um bom nadador do livre, foi nosso melhor costista disparado na primeira metade da década de 60.

A Viagem ao Japão

Os treinamentos voltaram a se intensificar. A motivação para tanto foi a mesma que hoje em dia é parte da rotina de nossos melhores nadadores mas, naquela época, era uma raridade. Manoel foi convidado para participar de uma série de competições internacionais de alto nível, primeiro no Japão, e depois, acidentalmente, nos Estados Unidos. Aqueles anos foram os últimos nos quais a reputação do Japão na natação ainda trazia anualmente os mais talentosos convidados internacionais, principalmente americanos, para participar do campeonato nacional japonês e de outras competições de exibição durante o verão japonês. Esta tradição vinha desde a década de 30, quando japoneses e americanos dominavam completamente o cenário natatório.
Depois de uma ginástica burocrática e política com os cartolas paulistas, que iria ter seu preço cobrado no devido tempo, Manoel partiu para o Japão trazendo consigo Hirano. Lá, ele e o argentino Nicolao, o outro convidado, se juntaram à equipe americana representando a nata mundial, e partiram para um tour de três competições nas ilhas nipônicas. Nicolao e Manoel, por solidariedade geográfica, mas também por pragmatismo de sobrevivência, foram companheiros próximos durante aquela estada. Como muitas vezes acontece com brasileiros e hispânicos no exterior, um viu no outro a ilusão de ser bilíngue, quando na verdade a comunicação se dá através de uma terceira “língua”, um arrastado portunhol. Mas o que ninguém sabia era que ali, entre os dois jovens latinos, um pouco perdidos no oriente e a reboque dos famosos americanos e japoneses, estava guardada escondida metade dos recordes mundiais de velocidade na natação, que em breve seriam revelados para o mundo inteiro de dentro da piscina do Guanabara.

Manoel deu conta do recado dele com louvor. Em Tóquio, no campeonato japonês, ele ficou em primeiro nas eliminatórias, semis e final, com os tempos de 55s1, 55s2 e 55s3, respectivamente. O maior velocista americano, Steve Clark, e japonês, Yamanaka, ficaram pra trás. Os 55s1 representaram novo recorde sul-americano. Naqueles tempos a homologação de recordes levava semanas e, não raro, estes eram quebrados antes de oficializados. Foi o que aconteceu no Japão, porque Manoel levou o ouro também nas competições em Nagóia e Osaka, sendo que nesta última ele abaixou o recorde sul-americano mais um décimo, para 55s cravados, a melhor marca da história até então em competições internacionais. A viagem ao Japão tornou Manoel conhecidíssimo entre nadadores e técnicos americanos e a imprensa esportiva especializada. Foi a constatação de que aquele furor dos primeiros 50 metros na olimpíada de Roma não era acidental. Aliás, alguns passaram a prever um recorde mundial, caso Manoel melhorasse sua única fraqueza, a complicada virada olímpica daqueles tempos.

Na volta do Japão, via Los Angeles, nosso campeão resolveu por um detour no Havaí. Vários dias depois, Manoel, bronzeado, relaxado e destreinado, desembarcou em Los Angeles. Dada a sua recente fama adquirida então, ele foi convidado para participar do campeonato americano naquela cidade e topou a honra. No dia 18 de agosto de 1961, Steve Clark, derrotado sucessivamente por Manoel no Japão, venceu a final dos 100m livre, sob estrondosa torcida. Seu tempo de 54s4 batia a marca mundial prévia de 54s6, do australiano John Devitt, desde janeiro de 1957. Manoel não foi de todo mal, mas ficou em quarto lugar, nadando acima de 55s. Ainda dentro da piscina, ele foi fotografado cumprimentando Clark, para sair na edição da revista Swimming World de setembro de 1961. Só entre os dois, rolou uma promessa ou ameaça amiga. Manoel afirmou categoricamente que, ao voltar para o Brasil, bateria aquele recorde mundial. Clark escutou e não ousou duvidar, como revelaria no futuro. O brasileiro já estava há algum tempo perto demais do topo do mundo para não acreditar ser possível a façanha. Eis aí a diferença psicológica crucial que faz um recordista mundial.

Foto da revista Swimming World de 1961

Foto da revista Swimming World de setembro de 1961

O Recorde Mundial de Hora Marcada

Manoel aterrissou no Brasil, tirou as fotos clássicas, de buquê de flores na mão, na escada do avião e, sem perda de tempo, partiu para os treinamentos com Hirano. Ao solicitar à CBD e FINA a tentativa de quebra de recorde, ele tornou sua promessa pública e deu um passo à frente com a coragem de quem vai ter que se expor perante a todos. O desafio era nada menos do que provar ser o mais rápido nadador do mundo. Mas a maior pressão e motivação vinha do seu compromisso com três pessoas. Com o técnico Hirano, com seu pai e consigo mesmo.

Na segunda-feira, 18 de setembro de 1961, treinado como nunca antes, Manoel partiu de Santos, de automóvel, como se dizia na época, com Hirano no volante, rumo ao Rio de Janeiro. Lá os dois se instalaram por conta própria no Hotel Paysandu, no Flamengo. Estavam preparados para gastar duas diárias cada um, além das refeições de prato feito do hotel. Nos jornais, estava anunciado a data da tentativa para terça-feira, no Guanabara ou Vasco da Gama. Mas o dia seguinte acabou sendo usado para treinamento e adaptação na preferida piscina vizinha ao Mourisco. O dia D foi marcado para quarta-feira, 20 de setembro de 1961.

No dia seguinte, um pouco antes das 4h da tarde, os dois chegaram no Guanabara. Manoel, barbado, uma cisma dele, como dizia. As dependências do clube estavam quase desertas. Ele aqueceu, deu seus tiros de 25, e foi pro vestiário para uma rápida massagem, executada pelo técnico. Ao sair do vestiário, a ficha caiu. Três mil pessoas apareceram do nada, ainda em tempos de ternos e até algum chapéu, para torcer e checar se aquilo era de verdade mesmo. Neste momento, perante tal plateia, Manoel deve ter decidido, um pouco inconscientemente, que usaria a primeira tentativa pra acalmar os nervos. Afinal, ele tinha três chances. Mas como ele racionalizou tal decisão foi com a desculpa do encaixe da virada, seu ponto fraco. Bater a mão na borda e dar a cambalhota olímpica, sem oclinhos, nas águas turvas do Guanabara, era como acertar a faixa do salto triplo. Para Manoel, era necessário mais de uma chance.

Manoel caminha para a largada, com a piscina lotada do Guanabara

Manoel caminha para a largada, com a piscina lotada do Guanabara

A caminhada com todo o calor da torcida para o buscar o recorde mundial

A caminhada com todo o calor da torcida para o buscar o recorde mundial

E assim foi. Na primeira tentativa ele ficou na virada. Sob um silêncio do público duvidoso, ele desceu novamente pro vestiário com Hirano, um pouco arrependido pelo bom tempo de passagem nos 50 metros. Mas aquilo surtiu tanto o efeito relaxante desejado como a raiva necessária. Com todo o apoio psicológico de Hirano, Manoel voltou pra piscina quinze minutos depois, lá pelas 5h da tarde. A torcida, um pouco constrangida, calou-se como num enterro. Dado o tiro, Manoel largou de chapada na raia 4, fotografia dos jornais no dia seguinte, virou sem percalços os 50m em 25s6, levantou a torcida nos 75m em 38s5, e bateu na borda de chegada com um tempo incógnito a todos, por alguns segundos.

Largada para a quebra do recorde mundial

Largada para a quebra do recorde mundial. A torcida se amontoava nas bordas da piscina.

O grupo de cronometristas oficiais era composto pelo triunvirato da natação brasileira, os conselheiros técnicos Júlio Delamare e Maurício Beckenn e o cartola Ruben Dinard de Araújo. Após um breve momento de consultas entre os juízes e apreensão geral do público e do herói dentro d’água, Delamare empunhou o revolver para cima e, com três tiros de festim, confirmou a nova marca mundial, 53s6. O Guanabara entrou em delírio. O momento mais emocionante da carreira de Manoel se deu a seguir. Escondido entre o público presente, tendo viajado sorrateiramente lá de Andradina, depois de negar sua presença no dia da tentativa, surgiu de surpresa o pai de Manoel. Numa fotografia, ou flagrante, como diziam, está registrada a grande felicidade do filho, abraçado ao pai, de um lado, e ao técnico e mestre, do outro.

Manoel dos Santos abraça seu pai e o técnico Hirano logo após a quebra do recorde mundial

Manoel dos Santos abraça seu pai e o técnico Hirano logo após a quebra do recorde mundial – fonte: arquivo pessoal de Manoel dos Santos

A braçada final para estabelecer o novo recorde mundial nos 100 livre

A braçada final para estabelecer o novo recorde mundial nos 100 livre

Destaque na revista Swimming World de novembro de 1961 para o recorde quebrado por Manoel dos Santos

Destaque na revista Swimming World de novembro de 1961 para o recorde quebrado por Manoel dos Santos

O recorde mundial durou três anos exatos, até ser batido pelo francês Alain Gottvalles, falecido este ano. Como recorde brasileiro e sul-americano, a marca durou quase onze anos, até ser batida por Ruy Tadeu A. De Oliveira, em Arica, em 1972. A repercussão nacional e internacional foi imediata, desde as matérias da Gazeta ou reportagem da Manchete, até a cobertura na imprensa francesa, liderada pelo L’Equipe. Técnicos e nadadores nos Estados Unidos, incluindo Clark, e Japão se mostraram pouco surpresos com o tempo de Manoel, de certa forma esperado por todos. Não faltou quem o comparasse a seu grande ídolo de infância, Johnny Weissmuller.

Manoel dos Santos e Johnny Weissmuller fonte: arquivo pessoal de Manoel dos Santos

Manoel dos Santos e Johnny Weissmuller
fonte: arquivo pessoal de Manoel dos Santos

O Adeus Em Forma

Veio então a última participação internacional do nadador. E que participação! Em fevereiro de 1962, Manoel foi a Buenos Aires ajudar o Brasil arrancar o tricampeonato sul-americano de dentro da casa dos argentinos. Nos 100m, 200m e 400m livre o duelo com Nicolao foi sensacional, com o argentino vencendo nas últimas duas por batida de mão e estabelecendo novos recordes sul-americanos. As pratas de Manoel, com os tempos de 2m7s3 nos 200m e 4m39s8 nos 400m, lhe valeram recordes nacionais que duraram quatro e dois anos respectivamente. Nicolao foi a grande estrela do campeonato e deu sinais do recordista mundial de borboleta que estava para brotar na semana seguinte, no Guanabara, com grande apoio de Manoel. As provas de revezamento decidiram o campeonato e o Brasil levou os três ouros masculinos, em provas disputadíssimas com a Argentina, com Manoel sempre fechando para os brazucas. O Sul-Americano de Buenos Aires mostrou o topo de sua forma, certamente do ponto de vista aeróbico.

Depois, o Pan de 1963, apesar de ter sido em São Paulo, provou estar além de sua paciência e flexibilidade financeira de atleta amador. Com 23 anos recém completados, Manoel foi trabalhar com o pai e começar a ganhar a vida, princípio familiar inquestionável em sua cabeça. A nós, brasileiros admiradores da natação, ele deixou esta singela história de conquistas acima dos nossos horizontes.

O Recorde Mundial em video

Aproveite para rever o recorde mundial de Manoel dos Santos em excelente reportagem exibida pela ESPN Brasil:

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Certificado Manoel dos Santos

 

Manoel dos Santos retribui o carinho do público após receber sua homenagem no Troféu Maria Lenk de 2014 - foto de Ale Koizumi

Manoel dos Santos retribui o carinho do público após receber sua homenagem no Troféu Maria Lenk de 2014 – foto de Ale Koizumi

 


 

ROMA – 1960 – A final dos 100 metros nado livre

O Hall da Fama foi atrás do filme de uma das provas que teve uma das chegadas mais debatidas na história dos jogos olímpicos e que possui um especial valor histórico para nós brasileiros, já que foi nessa prova que Manoel dos Santos conquistou sua medalha de bronze olímpica.

Tentamos conseguir o filme original junto ao IOC (International Olympic Comitee) porém ainda não conseguimos chegar em um bom acordo para disponibilizarmos o conteúdo que está armazenado no arquivo olímpico em Lausanne.

Fomos então atrás do International Swimming Hall of Fame (www.ishof.org) para verificar se eles possuiam essa filmagem nos arquivos deles. Tivemos uma ótima receptividade de nossos colegas do ISHOF e para nossa surpresa foi disponibilizado esse video histórico na noite de 09 de maio, atendendo a nosso pedido.

Segue reportagem exibida pela CBS em 1960, com parte da prova dos 100 metros livre em Roma. Manoel dos Santos chegou bem na frente na virada dos 50 metros, porém foi ultrapassado pelos concorrentes na virada e saiu forte, atropelando todos nos 50 metros finais, porém acabou ultrapassado pelo australiano John Devitt e pelo americano Lance Larson, perdendo o ouro na batida de mão, em uma das chegadas mais polêmicas dos Jogos Olímpicos.